Desde o advento da descoberta do fogo pelos nossos ancestrais praticamente esgotamos todas as maneiras de se assar um pedaço de carne. Vou contar uma aqui que provavelmente seja a melhor e mais bem sucedida criação gastronômica da nossa espécie. E, não, não estou exagerando.
Se você não é do ramo, comece escolhendo direito a peça de picanha. Não me refiro a sair por aí empunhando uma lança para caçar bovinos, ainda que o nome da receita sugira isso. Apenas vá à seção de carnes e leites do supermercado de sua preferência e procure pelas carnes nobres. Não se esqueça do cartão de crédito, as coisas mudaram muito desde a Idade da Pedra Lascada. Em algum lugar haverá picanhas embaladas à vácuo, vá nelas e não discuta, é bem menos constrangedor do que pedir por gentileza ao senhor açougueiro que lhe entregue o animal abatido.
Quando digo para caçar, digo, escolher direito uma boa peça de picanha, tenha em mente cinco critérios:
1) Uma boa picanha deve ter uma boa altura, coloração e cobertura de gordura uniforme, não muito fina, nem muito espessa. Isso significa que o animal foi bem tratado;
2) Atente-se à quantidade de sangue dentro da embalagem à vácuo, se tiver muito líquido significa que a carne perdeu o seu suco, que é o suprassumo do sabor (isso dá um slogan);
3) Repare também se a peça foi manipulada corretamente pelo frigorífico, ou seja, se não há vestígios de gordura, nervos e aponevroses na parte magra da carne;
4) Certifique-se do selo S.I.F. (Serviço de Inspeção Federal), pode parecer veadagem, e é;
5) E o último e mais importante: o peso. Não existe picanha com 1,5 kg, a menos que o boi tenha sido um avatar do king Kong. Picanha do rebanho nacional tem – inevitavelmente – entre 950g e 1,1kg, no máximo. Mais do que isso você estará comprando coxão duro por 40 reais o quilo. Imagine só o que seus ancestrais primitivos diriam de uma coisa assim.
Com a caça garantida, nos resta apenas mais um ingrediente: 1kg de sal grosso. Isso mesmo, essa é uma receita sem frescura. Nada de gengibre aromatizado, ervas finas, cominho e essas merdas todas que só prestam para nos deixar calvos e oxidáveis. Na nossa receita só tem carne e sal e não se fala mais nisso.
Muito bem, o que você tem que fazer agora é colocar uma boa música. Cozinhar sem ouvir um clássico do século passado é o mesmo que não cozinhar.
Agora vem a parte difícil. Tire a picanha do vácuo, não a lave, só as garotinhas amedrontadas lavam a carne. Lembre-se, já comemos carniça em determinado momento da nossa evolução, lavar a carne ofenderia a honra de toda a nossa espécie. Coloque o resto mortal do gado em uma assadeira, a parte da gordura deve ficar virada para cima – isso é uma regra. Cubra absolutamente toda a picanha com o quilo de sal grosso (caso alguém esteja por perto te observando, faça cara de quem sabe o que está fazendo, apesar de todo aquele sal, isso lhe impõe a mesma propriedade digna dos grandes chefes) . Pré-aqueça o forno a 180º graus. Coloque assadeira, picanha e sal grosso lá dentro, feche a tampa é vá jogar FIFA.
…já comemos carniça em determinado momento da nossa evolução, lavar a carne ofenderia a honra de toda a nossa espécie.
Quando terminar o primeiro tempo volte à cozinha, seu prato estará quase pronto. Restará apenas retirar a assadeira do forno (aqui contarei um experiência de vida. Nunca (imagine isso escrito em letras garrafais) NUNCA coloque a assadeira de vidro quente sobre o mármore frio da pia). Retire toda a capa dura de sal que cobre a carne, jogue fora (a capa de sal, não a picanha), fatie a carne e devore como um caçador voraz sedento por sangue.
P.s.: se quiser afrescalhar com a receita toda, após fatiar passe a carne em uma frigideira com manteiga e as malditas ervas finas. Sirva acompanhado de arroz branco e rúcula. Ah sim, coloque também um galhinho de alecrim e outro de tomilho – só para perfumar.