Ateu destemido, nunca dei muita importância ao feriado do dia 2 de novembro. Tenho meus motivos, o principal deles está intimamente ligado ao meu ceticismo incorrigível. Outro dia uma pessoa bastante culta me perguntou o que eu pensava da morte. Confesso que não esperava uma pauta tão estéril de alguém que lembra o nome de todos os generais de Hitler na 2ª Guerra Mundial. Mal consigo lembrar a escalação da Seleção Brasileira na Copa de 1994. Mesmo assim, respondi o que sempre respondo em situações como aquelas – que não tenho muitas dúvidas. E o fiz com probidade na alma, isso se eu acreditasse em almas, é claro.
A resposta simples e direta veio enquanto perambulávamos entre os túmulos em um típico dia de finados de cidade pequena. Para quem não sabe do que eu estou falando, um dia típico de finados de cidade pequena reúne no cemitério toda a população urbana e rural do município. Um evento magnífico para alguns nichos de mercado sazonais, devo sublinhar. Tem o vendedor de flores, de velas, de isqueiros e fósforos, de terços e até, o vendedor de algodão-doce. Quem poderia se sentir tentado a degustar um algodão-doce em um ritual tão fúnebre? Também têm as tendas de pasteis fritos na hora, outra que oferta melancia, churros, coxinha e tudo que abasteça as necessidades fisiológicas dos que vieram prestar suas homenagens aos falecidos. E foi nesse ambiente nada inspirador que eu renovei o ceticismo da minha resposta padrão para questões póstumas.
‘Não tenho muitas dúvidas.’ Deveras, uma resposta simples demais para algo tão intrigante. Imagino que eu não seja o único a pensar assim, mas tenho certeza que eu pertenço a alguma minoria. Digo isso porque a maioria das pessoas não tem o hábito de pensar direito em questões muito complexas. Filosofar costuma dar muito trabalho, e daqui a pouco vai começar o Caldeirão do Huck. Mas isso não é nenhuma forma de crítica social, bem pelo contrário, quero me ater apenas aos argumentos que me fazem pensar assim. Não quero que ninguém concorde comigo em nada, as pessoas pensam como pensam baseadas em infinitas variáveis. As nossas opiniões são moldadas conforme experiências que adquirimos ao longo da vida, pessoas com quem nos relacionamos, livros que lemos, ideias que temos, pensamentos que falamos e ouvimos – somos o resultado de uma grande equação. Com as mesmas fontes de informação, pensaríamos rigorosamente da mesma forma. Por isso, entendam as malditas diferenças e evitem desgastes ao debater os assuntos mais complexos!
Isso devidamente esclarecido, podemos voltar a falar da nossa existência perecível. E começo com uma pergunta bem simples: o que nos faria ter a pretensão de achar que somos criaturas especiais? Você acha mesmo que o animal humano tem algum privilégio sobre os outros seres vivos só porque tem consciência da própria morte? O que nos leva a crer que somos moralmente mais avançados que rinocerontes, gafanhotos, pulgas, vira-latas, ou ainda, carunchos? São todos seres biológicos que nascem, crescem, se reproduzem e morrem. No caso dos humanos, ainda assistem à novela das oito antes de se reproduzirem. As vezes, até conseguem se reproduzir enquanto assistem à novela.
Mas, vamos um pouco mais além e adentremos ao Plantae, citemos uma babosa, por exemplo. O que acontece com ela depois que encerra seu ciclo natural? Ok, vira shampoo ou alguma solução para intestinos presos. Melhor voltar ao exemplo do caruncho. Não acontece absolutamente nada depois que vivem suas vidas roendo madeira, ou você acredita mesmo que todos os carunchos do mundo estão só de passagem por este plano? O que eu quero dizer é que não existem argumentos minimamente pertinentes que sustentem a ideia de qualquer coisa consciente depois da morte. Nada. Zero.
Ok, sobra a fé.
Devemos lembrar que a base principal de muitas religiões é o próprio desprezo pela vida. São instituições que insistem em pregar que todos os fieis estão aqui de passagem e o melhor mesmo ainda está por vir. U-hu! Pois é, não parece muito plausível. Fé não é argumento pra muita coisa, é apenas… fé. Eu posso ter fé no que bem entender, não tenho compromisso em explicar nada. Tenho fé que um dia a corrupção vai acabar, que meu reumatismo vai sumir, que em setembro vai chover, e que, inclusive, existe um Deus monitorando tudo o que pensamos. Lamento, mas a fé não tem o poder de mover montanhas, é só uma metáfora das mais pancrácias que existem.
E já que o texto está ficando pesado mesmo, posso confessar aqui o quanto eu fico intrigado com a falta de bases racionais que levam as pessoas a cultuarem os mortos. O cérebro humano é tão poderoso e mesmo assim a tal inteligência coletiva aceita “verdades” inquestionáveis que me deixam embasbacado. Não entendo como a religião pode coexistir com o materialismo, conheço muitos religiosos materialistas. A própria América foi baseada nesse conceito contraditório. Mas, deixando a fé momentaneamente de lado, não demora muito a concluir que este razoável espaço de tempo que batizamos de “vida” é tudo o que nos resta. Lamento por isso.
Nós não temos um camarote nos esperando no paraíso. Não existe paraíso. Nós não somos especiais. Apenas viva direito.
Quando morremos, acontece conosco a mesma coisa que acontece com um maldito caruncho, ou gafanhoto, ou babosa. Nós viramos esterco, adubo, fonte de energia para outro tipo de vida, um ciclo perfeito, devo lembrar. E isso não tem relação nenhuma com Deus ou seja lá com qual for o destino que fantasiamos para nós. Lamento mais uma vez informar, mas nós não temos um lugarzinho especial guardado no céu. Nós não somos especiais. Só nos resta a fé em qualquer coisa que quisermos acreditar, afinal, para a fé, a verdade é o que menos importa.
Espera aí, o que você está dizendo? As revelações não podem estar erradas, bilhões de pessoas acreditam nisso. Esse é outro argumento bem raso. Acredito cada vez mais que a maioria das multidões são formadas por meras expressões carnavalescas. É apenas fé sendo repetida mil, cem mil, duzentas mil vezes. O que não falta nesse mundo são provas da engenhosa bestialidade humana, confortada pelas multidões e seus coros Ad nauseum. E por favor, não se sinta ofendido se você tem fé, não é de você que eu estou falando.
É cientificamente provado que a mente humana precisa de respostas – de qualquer resposta. E veja só: não existe a mais remota probabilidade de chegarmos sequer perto de ter a capacidade para saber o que realmente acontece com a nossa consciência depois que morremos – se é que acontece alguma coisa. E não a temos por um único motivo: ainda estamos vivos e gozando da nossa óbvia limitação. Suponhamos que a verdade seja a que está nas inscrições ditas sagradas: depois da morte os bons vão para um paraíso imaginário e os ‘sem Deus no coração’ vão para um porão batizado de inferno. Se essas condições fossem menos infantis, o mundo não seria como o conhecemos hoje, justamente porque a fé não se sustenta perante a razão. É só um paradoxo bastante simples.
Reproduzindo o trecho de um artigo de Julian Barnes que eu li na Revista Piauí, podemos dividir a nossa espécie em dois grupos baseados na fé: os que temem a morte e os que não a temem. Tem os que não temem porque têm fé e os que não temem apesar de não terem fé. Esses dois estão no plano mais alto da moral. Em terceiro lugar, vêm aqueles que, apesar de terem fé, não conseguem se livrar do medo antigo, visceral e racional da morte. E finalmente, existem os infelizes que temem a morte e não têm fé.
Para mim, a reflexão é bem mais simples: como eu posso temer algo tão natural e imutável sabendo que eu não estou desperdiçando a minha vida? Soa melancólico. O medo de morrer está no remorso das vidas não vividas, das arestas escancaradas, do legado sem muita nobreza. Resumindo, é isso. Melhor manter as coisas em ordem, já que nunca se sabe quando a morte vai chegar. Se você nega a morte completamente, você não vive direito. O propósito da vida é a morte. Tudo o que somos, pensamos e sentimos são provenientes de experiências mundanas. Somos parte de um ciclo e faz todo o sentido que a nossa carcaça apodreça na terra enquanto é devorada pelos vermes.
Quando você morre, é um dia como qualquer outro, só que mais curto.
Eu tenho intenção de viver 90 anos, considero bobagem ir muito além disso. Ninguém precisa viver tanto, se você não fizer tudo que tem pra fazer em 90 anos, é melhor que morra de uma vez e pare de ocupar espaço. Sem remorsos, não tome isso como um desapego irracional pela condição humana. É por isso que quando eu parar de funcionar completamente, peço que não hesitem em me jogar numa vala qualquer, sem muitas cerimônias. E aproveitem o feriado de finados com alguma coisa menos trivial.
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