É muito comum que as pessoas se queixem da sua falta de sorte. Você certamente já ouviu alguém dizer que nunca ganhou nem panela em bingo de quermesse. Você, provavelmente, também já disse isso. Só não entendo qual é a relação que isso tem com a sorte. Ser sorteado entre milhares de pessoas não é sorte, é cagada. Muita cagada. Reúna 15 pessoas e tirem a ‘sorte’ no palitinho, você fatalmente vai perder, 15 pra 1 é muita coisa. Imagine então num bingo de igreja com 5.000 pessoas? Algum matemático calcularia isso facilmente e diria que a probabilidade é a mesma de ser atingido por uma cusparada de pinguim enquanto passeia pela Savana Africana. É muito difícil ter esse tipo de sorte.
Ainda assim, sem querer parecer esnobe, eu me considero uma exceção. Por algum motivo sou constantemente contemplado sempre que me meto em algum sorteio. Diria que estou bem acima da média, bem acima mesmo. Normalmente ganho mais do que perco, mas nem por isso me considero alguém tipicamente sortudo, muito pelo contrário. Permita-me que eu explique isso direito.
Há 20 anos atrás eu era um típico garoto do interior. Vivia numa cidade bem pequena batizada de Colider (conheça Colider assistindo ao Jornal Nacional). Naquela época, tinha como únicas preocupações na vida tirar boas notas na escola e não perder a hora para assistir ‘Os Cavaleiros do Zodíaco’. O tempo passa bem mais devagar quando se tem 11 anos de idade em uma cidade pacata e perdida no meio do nada. E foi justamente nessa época da minha vida que eu comecei a descobrir o rabo que tinha para sorteios.
Em um belo fim de semana viajei com a minha família para uma cidade próxima onde aconteceria uma corrida de kart. Era a inauguração do kartódromo de Sinop, cidade igualmente pacata no norte de Mato Grosso. Meu irmão, três anos e meio mais novo, e eu, herdamos de meu pai a paixão pelo automobilismo. Para nós três, aquele kartódromo era o que Meca é para um muçulmano. Saímos no sábado de manhã e pouco mais de 2 horas chegamos à capital do trigo – ou seria a capital do arroz? Sinop nem era tão distante assim, o problema é que nosso carro era um Corcel I. Você lembra do Corcel I? Enfim.
A largada da 1ª bateria seria ao meio dia, pilotos do país inteiro vieram para aquela etapa do campeonato brasileiro de kart – ou seria o campeonato estadual? Não lembro direito da relevância do evento. O que lembro é que estávamos nós quatro: pai, mãe, irmão e eu sentados na arquibancada esperando pelo início da corrida. Mais de 10 mil pessoas lotavam as dependências do novíssimo kartódromo. Clima perfeito para um sábado de muita velocidade.
Em determinado momento, o narrador da prova, que animava o público, foi até a reta dos boxes e subiu em um palco mal e porcamente instalado. Com seu microfone em punho berrou para os seus ouvintes: - Atenção, população de Sinop e região. Vamos sortear agora esta linda bicicleta 18 marchas. Todos guardaram o canhoto com número do ingresso? E a multidão respondeu em uníssono: - Siiiiiiiiimmmmmm. O narrador continuou: - Então vamos lá, o número sorteado é… (ele dizia isso enquanto metia a mão dentro de uma enorme urna de acrílico com os 10 mil e tantos papeizinhos. Enquanto ele falava eu pensava comigo: que baita mico para quem ganhar tem de ir lá embaixo buscar aquela bicicleta) …e o número é 3.850.
Naquele momento eu olhei para o lado e vi o número que meu irmão segurava, e para minha surpresa era o 3.851. - Cacilda, você é muito azarado, não ganhou por 1! Então caiu a ficha: eu tinha depositado meu número exatamente antes dele. Levei a mão ao bolso e puxei o meu canhoto, quando olhei para ele senti o coração bater mais rápido que o ‘Paulinho pé de chumbo’, pole position daquela bateria.
- Mãe, olha aqui, deve ter alguma errada com o meu número, é o mesmo que o moço do microfone anunciou.
– Não tem nada de errado, você ganhou a bicicleta, seu idiota.
– Ganhei?
De fato, ganhei. Paguei o mico de descer até a pista e ser observado por toda aquela gente. Assim que cheguei à pista, o narrador perguntou meu nome e apontou o microfone para a minha fuça: - É Luciano. Respondi e me assustei com o deley da minha voz sendo amplificada alguns segundos depois pelas enormes caixas de som. - Você é muito sortudo, sabia? Foi a segunda pergunta. Voltou o microfone em minha direção, mas dessa vez eu não sabia o que dizer, pra mim aquilo não foi uma pergunta, e sim uma constatação. Então achei melhor ficar quieto. O narrador continuou olhando pra mim com o microfone a um palmo do meu queixo. Todos no kartódromo ficaram mudos esperando por uma palavra minha. Eu continuei quieto e assustado, primeiro porque não sabia o que responder (o que eu poderia dizer? Você acha mesmo?), segundo porque estava com muita vergonha do som da minha voz saindo daqueles alto-falantes.
Passaram-se alguns segundos e senti que todos estavam torcendo para eu dizer alguma coisa, qualquer coisa. O narrador percebeu que estava diante de um garoto bastante mocorongo, então fez a terceira pergunta daquele quase monólogo: - Onde você mora, Luciano? Essa era fácil, respondi prontamente: - Colider. Mas, voltei a fazer merda. Como eu estava no auge da minha puberdade, também estava trocando de voz, e nessa fase é muito comum oscilar entre o grave e o agudo dentro da mesma palavra. O resultado foi um desastroso CO (bem alto e grave) LI (baixo e agudo) e DER (alto e novamente grave). Uma gargalhada sem precedentes naquele kartódromo foi ouvida. O narrador se sensibilizou com a minha cara de matuto perdido e tentou me ajudar, fazendo a quarta e última pergunta: - Luciano, como você vai fazer para levar essa bicicleta até Colider? Então eu fechei o show de horrores com chave de ouro: - Se meu pai deixar, vou amarrá-la em cima do Corcel. Só consegui aumentar a gargalhada. Aquela experiência me traumatizou por alguns anos.
Já mais velho e um pouco menos bocó, continuei sendo perseguido pela sorte quando viajei a trabalho para conhecer a filial de uma das empresas do grupo onde eu trabalhava. Naquele dia fariam uma grande festa de confraternização após o expediente e eu fui convidado a participar. Lá chegando, o diretor da companhia avisou que sortearia entre os funcionários uma viagem com tudo pago e direito a um acompanhante. Teoricamente, eu não fazia parte daquela equipe, apenas coincidiu de estar presente na cidade no dia da festa. Fiquei num canto observando tudo de longe, vendo como todos estavam ansiosos para conhecer o felizardo que relaxaria em Porto Seguro.
Então chegou o tão esperado momento do sorteio e alguém sugeriu que meu nome se integrasse aos postulantes ao grande prêmio da noite. Afinal de contas, eu trabalhava no mesmo grupo e acharam que seria um sinal de hospitalidade me dar uma chance de ganhar também. Imediatamente eu sugeri que não o fizessem, estava ali apenas como convidado, não precisavam se preocupar comigo. Mas, insistiram, e lá foi meu nome pra dentro da urna. Pensei comigo: só falta eu ganhar e gerar um mal-estar com a filial inteira. É melhor que eu não ganhe. Mas, não deu outra. A mão que puxou o papelzinho me encontrou, e dentre os 450 candidatos a visitar a Bahia, eu fui o escolhido. E como eu suspeitava e temia, praticamente todos me olharam torto, não concordando muito com a minha participação. O pinguim cuspiu novamente na minha cara em plena Savana Africana.
Também ganhei um aparelho de DVD numa época em que aparelhos de DVD representavam a última palavra em tecnologia. Estava em um evento beneficente e alguém resolveu sortear o eletrônico de uma forma diferente. Todos os presentes tinham que colocar seus nomes dentro de um globo, na sequência começariam a retirá-los e o último nome que restasse seria o grande vencedor. A ideia era privilegiar os mais azarados. Eu não estava muito empolgado com aquele prêmio, havia comprado um aparelho de DVD em suaves prestações uma semana antes. Eu não precisava de dois Discos Digitais Versáteis, era melhor não gastar a sorte com aquele prêmio.
Então começaram a tirar os nomes. Fui ficando, ficando e ficando. Até o momento onde só sobraram apenas dois nomes dentro do globo da sorte. Eu e uma tal de Chatriane. Que diabo de nome era aquele? Chatriane. Imagina se ela se casa com alguém da família Chateaubriand? Chatriane Chateaubriand. Eu não podia ser menos sortudo do que alguém que recebeu um nome desses. De novo, não deu outra. Chatriane virou Chatriane da Gama e eu fiquei com dois aparelhos de dêvêdê. Depois ela, a Chatriane, veio negociar comigo. Perguntou se eu não queria vender o prêmio a ela. Fui sincero com a simpática garota, e disse que acabara de comprar um aparelho igualzinho e que daria aquele de presente a ela. Chatriane era bonitinha e eu pensei que com aquele gesto ela pudesse me convidar para tomar uma garapa qualquer dia. Só que não. Fiquei sem o encontro e sem o DVD.
Se a sua vida for a melhor coisa que já te aconteceu, acredite, você tem mais sorte do que pode imaginar.
Em certa ocasião ganhei também um forno para assar pão de queijo. Muito útil, devo ressaltar. Como alguém viveria sem um desses em casa? Também ganhei um ventilador, uma câmera fotográfica e um carro. Mas esse do carro acho que não vale. Foi em um bingo, de novo em Colider. O padre da cidade vivia realizando megabingos aos domingos e a paróquia comparecia em massa. Como disse, era uma cidade bem pacata e ninguém gostava muito do Faustão. Os bingos eram sempre realizados na praça central da cidade, onde os fartos gramados ficavam tomados pela população em busca da sorte grande.
Num desses eventos eu estava lá com a minha cartela, faltavam umas 10 pedras para mim e já tinha neguinho na boa. Em disputa estava o 2º prêmio da tarde, um Gol mil zero km, daqueles quadradinhos que vieram antes do Gol bola. O 1º prêmio era um Escorte XR3 vermelho, conversível, coisa linda. Com aquele padre não tinha miséria. Como ia dizendo, minha cartela não estava muito animadora, nem se cantassem todos os números do globo eu ganharia alguma coisa naquele dia. Porém, ao meu lado, contrastando com meu tédio, estava meu tio, que se retorcia impacientemente.
- Tá na boa aí, tio? Perguntei.
- Não, Lu, bebi muita cerveja e preciso desesperadamente de um banheiro. O problema é que faltam só 3 números aqui na minha cartela. Você não quer marcar pra mim? Disse já não se aguentando de vontade de se aliviar.
- Claro, tio, eu marco com o maior prazer. Então fiquei sozinho marcando as duas cartelas.
Enquanto isso o cantador de bingo disparava com a sua voz imponente:
- Rooooooodou o globo e caiu! Letra ‘O’, raso número 60! Repetindo: Letra ‘O’, raso 60!
- Ih, rapaz! O tio tem esse número, faltando só duas pedras agora.
- Rooooooodou o globo e caiu! Letra ‘N’, dois patinhos na lagoa… 22! Repetindo: Letra ‘N’, número 22!
- Carambola! Ele tem de novo. Tá na boa! Acho que agora sou eu quem precisa de um banheiro. Quer ver eu ganhar e ter que subir no palco de novo? Melhor parar por aqui.
- E atenção que já tem gente na boa. – Rooooooodou o globo e caiu! Letra ‘I’, sorte para quem não a tem… 13! Repetindo: Letra ‘I’, número 13!
- Bingo, bingo aqui… Bingo!!! Bingo!!! Biiiiiiiiiiingo!!! Berrei aos quatro ventos. Meu tio havia ganhado um carro, isso lá era hora para estar preocupado em mijar? Não sabia se corria atrás dele ou se ia até o palanque falar com o padre. Lembrei do mico no kartódromo e fui atrás do mijão. Consegui encontrá-lo no meio do caminho e lhe entreguei a cartela premiada: - Toma, passa que é teu! O homem não acreditou ao ver sua cartela toda preenchida, me deu um abraço e sumiu na multidão atrás do seu prêmio.
Daniel Godri disse certa vez: “Se a sua vida for a melhor coisa que já te aconteceu, acredite, você tem mais sorte do que pode imaginar.” Tenho uma teoria para a sorte: você não pode desejar o prêmio. É uma forma de enganar as forças que escolhem os vencedores e os perdedores de sorteios. No meu dia a dia eu sou incrivelmente azarado, o amigo Leandro Magalhães sabe bem como as coisas funcionam comigo. A bobina do caixa do supermercado sempre termina na minha vez. O pombo sempre vai cagar na minha cabeça, não importa se eu estiver sozinho escalando o Everest ou em um show da banda Calysto. É Calysto o nome daquela banda com uma cantora brega e um guitarrista com mecha no topete? Aquilo é uma mecha ou o pombo também cagou na cabeça dele?
Não importa, a questão é que comigo o pneu sempre fura. O dente sempre quebra. A maquininha da Cielo sempre trava. A bolada sempre me acha. O cachorro sempre me morde. O dedo sempre corta. O celular sempre cai na privada. O moleque catarrento sempre senta ao meu lado no voo longo. A fila do guichê sempre enrosca. Acho que é para compensar todos esses pequenos azares que o universo me presenteia de vez em quando com viagens, bicicletas e fornos para assar pão de queijo.
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