Manhã de verão e meu cão Leopoldo me convida para um passeio pelas cercanias desertas do bairro. Já na esquina, notamos as silhuetas de duas figuras sob sombrinhas negras. Ambas possuíam estaturas medianas, peles amareladas e cenhos marcados pelos efeitos da ação solar. Assim que nos avistam, elas apertam o passo em nossa direção, como tubarões que farejam sangue. Rapidamente se aproximam para nos dizer alguma coisa. Leopoldo, inquieto, rosna para aquelas senhoritas de vestidos longos e sandálias igualmente surradas. Aquilo não parecia nada bom. Lá vem, pensamos.
- Tem um minuto para ouvir a palavra?
- Mas é claro que tenho! – Respondi já sabendo que aquilo poderia render uma boa narrativa não-ficcional ao melhor estilo Woody Allen. Leopoldo olhou para mim e movimentou a cabeça como se dissesse: – Você não disse isso.
- Você acredita na salvação, filho?
- Salvação? Filho?
- Sim, filho, na salvação divina.
- Não, eu não acredito, estou muito longe de acreditar e também não tenho idade para ser seu filho.
- Você não acredita?! – Elas se entreolharam com alguma desconfiança.
- Não. Por que o espanto? – Notei que as duas levaram um pequeno choque com a minha resposta incomum e recheada de convicção.
- E poderia nos dizer por que você não acredita na salvação?
- Não a acho plausível.
- Como assim? Não entendemos.
- Qual parte?
- O que você não acha plausível?
- As revelações, ora bolas!
- Mas o que seriam essas revelações?
- Pensei que vocês saberiam.
- Estamos um pouco confusas.
- Deve ser o calor.
- Então nos diga quais são essas revelações.
- Me refiro ao onirismo da coisa toda, um Messias, ensinamentos psicografados. Não me sinto a vontade lendo sobre a origem das crenças e todos os seus meandros.
- Continue – As duas mulheres estavam estáticas, dedicando extrema atenção enquanto eu falava igual uma matraca desembestada.
- Não acredito em nada que não seja minimamente matematizado por algum senso comum. Me irrito quando a fé é o único argumento. Também não gosto como tratam o termo “sagrado”. Prefiro prestar mais atenção ao que prega a ciência, que, de fato, é quem contribui substancialmente com a nossa evolução.
- Mas a Igreja também contribuiu com essa “sua” evolução.
- Contribuiu não.
- Contribuiu sim. Por que acha que não? Nos dê um exemplo. “Não, não dê” – pensava Leopoldo.
- Com o maior prazer. A Igreja perseguiu Galileu e o seu heliocentrismo. Contrariou a lógica de Colombo, contrariou a lógica dos gregos – dos gregos! -, afirmou por muito tempo que a Terra era o centro do universo, pior: afirmou que a Terra não era redonda, e sim, plana.
- Me desculpe, mas acho que você está bastante equivocado.
- Tanto assim?
- Sim, está. Quem comprovou que a terra era redonda foram os astronautas.
- Como é?
- Sim, o astronautas. Quando foram à Lua.
- Você está falando de 1969?
- Não lembramos da data, mas foi isso que aconteceu.
- Esperem um pouco. Vocês estão dizendo que só descobrimos que a Terra é redonda quanto fomos à Lua?
- Isso mesmo.
- Desculpem a minha falta de jeito, mas devo repetir a pergunta: Vocês estão dizendo que só descobrimos que a Terra é redonda quanto fomos à Lua?
- Sim, de novo.
- Leopoldo, você ouviu isso?
- Ouvi sim, até os cães gregos sabiam que a Terra era redonda, deve ser o calor.
- Senhoritas, lamento decepcioná-las, mas já desconfiávamos que a Terra não era plana desde o século III a.C – e isso faz muito tempo.
- Não, foram os astronautas.
- Foi Eratóstenes pelo amor de Deus!
- Viu, mencionou Deus?
- Força da expressão. Também uso o “Nossa!” e “Misericórdia” em algumas exclamações de extremo espanto.
- Então como pode dizer que a religião não contribuiu com a evolução?
- Só por causa das expressões?
- Da expressão e do calendário que seguimos, da influência política, social… Deus está em tudo.
- Diga isso ao pessoal do CERN.
- Então você já ouviu falar da “partícula de Deus”.
- Já, em algum livro de Dan Brown, Fortaleza Digital, eu acho. Mas também acho que vocês jamais leriam um livro assim.
- E você, leria a Bíblia?
- Li quando fui obrigado.
- Como assim?
- Passei alguns dias num postulantado franciscano na minha adolescência.
- Deve ter sido uma experiência muito boa para você.
- E foi, ouvi ótimas metáforas enquanto estive lá.
- A questão é que religião e ciência podem viver harmonicamente.
- Também acho, a Igreja não precisava ter matado os cientistas.
- Não os matamos!
- Ah não? Recomendo que leiam mais sobre a origem da fé. É bastante medonho.
- Está bem quente hoje e você está nos desviando do foco, queremos apenas lhe mostrar a palavra.
- Acho que são vocês que estão fugindo do tema. Sabiam que a Igreja sempre censurou o avanço do conhecimento? Ela cerceou todos que foram contra seus dogmas, incluindo – e especialmente incluindo – a ciência.
- Esse cachorro é seu?
- Sim, é o Leopoldo.
- Ele não tem cara de Leopoldo.
- Agora são vocês que estão fugindo do assunto.
- Como você pode dizer que a Igreja impediu o avanço do conhecimento?
- A Igreja, antes de falir, sempre legislou, julgou, condenou e entregou os cientistas para instituições seculares. Foi assim com Giordano Bruno, Copérnico, Galileu… tenho uma lista inteira aqui no Google do meu celular. Se isso não é matar, precisam rever a definição de assassinato.
- Não fazemos parte dessa Igreja que você está descrevendo.
- Não?
- Não!
- O que são então?
- Testemunhas de Jeová.
- E o que testemunharam?
- Testemunhamos milagres que você prefere não entender. A nossa missão é ir de casa em casa para evangelizar pessoas, ensinar o caminho da luz. Não somos fundamentalistas, como você aparenta pensar.
- Não aparento pensar nada, também não sou herege, não leu meus últimos textos sobre preconceitos?
- Você escreve?
- Sim, sou blogueiro, mas também estou escrevendo um livro.
- Não lemos livros satânicos, nem blogs, apenas a palavra de Deus.
- Não deveriam ser tão radicais assim.
- Sabemos o que devemos.
- Impressão minha ou isso está ficando tenso?
- Deve ser o calor.
- É, deve ser.
- Então vamos abreviar essa conversa.
- Não era eu quem deveria dizer isso? Normalmente as pessoas fogem de vocês.
- Fogem porque temem o que não compreendem.
- Belo argumento, deixa eu anotar aqui, pode ser útil em algum post.
- Tudo bem, de qualquer forma podemos te entregar algumas revistas?
- Claro que podem. São revistas sobre o que? Não, esperem. Deixem-me adivinhar… apostaria meus rins que não tratam-se das últimas edições de Galileu.
- São publicações sobre a nossa missão na Terra.
- Terra redonda, devo lembrar.
- Gostaríamos que não zombasse disso.
- Não resisti, desculpe.
- Tudo bem. Só recomendamos que estude mais a fundo a nossa missão.
- Vocês nunca discordam uma da outra?
- Nossa missão é mais importante do que qualquer coisa.
- Do que qualquer coisa?
- Sim.
- Nesse caso, mande lembranças ao Sr. Gagarin.
- Quem é esse?
- Um soviético que não enxergava direito. Venha, Leopoldo!