11.04.13

QUESTÕES LITERÁRIAS \ Primeiros livros não são feitos para serem bons

Quase ninguém entende meus textos. Costumam dizer que é perda de tempo parar para lê-los. Divago demais, vivo perdendo o foco, sou raso e superficial, alegam. Normalmente não me importo muito com isso, mando-os catar coquinhos e continuo escrevendo. Até onde lembro, nunca prometi ser objetivo em minhas crônicas. Se me acha raso e indireto, que não me leia, ora bolas. Onde já se viu, o sujeito vir me dizer que meus textos são perda de tempo em um século tão democrático como é esse em que vivemos?

Expliquei isso a uma editora de uma editora (?) e ela concordou plenamente com a minha liberdade literária: Luciano, você pode escrever o que bem entender, como bem entender, na hora que bem entender, onde bem entender. Só não tente publicar – seria perda de tempo. O que as editoras querem é publicar autores profundos e diretos em seus textos, pensamentos que agreguem algo ao leitor. Um amontoado de divagações inúteis não vende, melhor guardá-las para você. Então eu também mandei a editora e sua editora catarem alguns coquinhos.

Assim que terminei o manuscrito do meu primeiro livro entreguei à minha professora de português da época do colegial, Ruth Schenffweimmer. (Não tenho certeza se escreve-se com dois ‘emes’, dos dois ‘efes’ eu tenho certeza). Uma alemã ranzinza e carrancuda, de cabelo curto e encaracolado, alta e envergada para frente – o avatar do capeta, seria uma boa definição não fosse seu gênio amável. Mesmo assim, poucas coisas são tão claras em minha memória como uma verruga que Ruth tinha no queixo. No centro da verruga um único pelo negro e espesso que centralizava a atenção sobre todos os demais elementos daquela face. Não era bonito.

Pedi a ela que revisasse meu manuscrito com a mesma atenção com que corrigia as minhas redações semanais no 2º grau. Modéstia a parte, Ruth sempre me elogiava publicamente. Não era raro flagrá-la profetizando aos seus alunos: - Classe, anotem isso: o colega Luciano ainda será um grande escritor do nosso tempo, inspirem-se nele. Sabia das coisas, a Ruth. Não deu outra, assim que terminou de ler os meus rascunhos ela entrou em estado de graça – apesar dos seus oitenta e muitos anos e sofrendo com os efeitos avançados da catarata.

Agora imagine a verruga.

Nunca compreendi direito por que eu precisava publicar um livro. Coisa besta, sem muita reflexão. Era apenas algo que queria muito fazer. Certa vez um dos melhores amigos que fiz na vida me disse sob o som aveludado do jazz clássico que tocava em uma festa de gala: Luciano, preste muita atenção no que eu vou te dizer agora. Algo só merece estar no papel se tiver alguma relevância para a posteridade, caso contrário, poupe as árvores. Ele disse isso e bebericou um martíni com a mesma airosidade de um agente secreto. No fundo eu sempre o achei meio veado, título que reconsiderei quando notei que ele tinha muito mais sucesso com as mulheres do que eu. O que também não é lá uma grande façanha.

Trajávamos black-tie, já que tratava-se de uma festa bastante pomposa e tal vestimenta se fazia indispensável, pelo menos é o que alertava o convite igualmente pomposo que recebi dias antes. Aquilo que ele me disse me fez pensar por um bom tempo. Ele tinha razão, não faz sentido derrubar parte da nossa rica flora só para imortalizar um monte de merda, para isso existe a Internet, os blogs e as latas de lixo.

É bem difícil apontar momentos cruciais onde a vida muda de rumo, mas foi bem ali, de smoking e martíni na mão que passei a viver a grande crise criativa da minha carreira de escritor, carreira essa que sequer tinha começado. Será que nunca terei meu próprio livro? Voltei a falar com Ruth algum tempo depois, precisava expor isso a ela e ouvir seus sábios conselhos. Todo mundo, em algum momento, precisa de um Mestre Ancião para dizer o que fazer.

Ruth, por sua vez, já não se lembrava mais de mim, muito menos que havia avaliado um manuscrito meu. Não lembrava sequer que tinha sido professora de redação em algum momento da vida. Descobri então que, além da Catarata, Ruth também estava começando a sofrer com o Mal de Alzheimer. Suspeito que só os descendentes de alemães têm Alzheimer na velhice, nunca ouvi falar de um queniano com tal enfermidade. Assim como nunca vi um alemão vencer uma maratona. Já vi quenianos vencerem maratonas na Alemanha. Uma, em especial, me chamou muito a atenção. Foi em Berlim, o cidadão correu 42.195 metros, cruzou a linha de chegada em primeiro lugar e deu lá duas estrelinhas para celebrar o mérito. Uma falta de respeito completa. Ninguém corre 42 quilômetros e comemora dando estrelinhas como se fosse a Daiane dos Santos. Deveriam prendê-lo por ofender os todos os sedentários do mundo.

Onde eu estava mesmo?

Lembrei, a avaliação de Ruth. Foi ela que deu o incentivo que eu precisava. Disse que o manuscrito tinha muita poesia e que eu certamente era a reencarnação de Machado de Assis. Só pediu que eu corrigisse os erros de concordância nominal e verbal, que relesse alguns livros de gramática e que não esquecesse de fazer o trabalho da semana que vem. – Mas Ruth, não sou mais seu aluno. – Você não é o Yoham, do 1º C vespertino? Guardo Dona Ruth no coração, que descanse em paz, a pobre verruguenta.

Por isso fiz a correção que ela pediu e diagramei o livro com meus próprios punhos. Fiz isso usando o Adobe PageMaker. Não sei se é o programa mais indicado, mas é o único que eu domino depois de ter trabalhado em uma gráfica durante a juventude. Na verdade, não tem muito segredo, nem para um tapado como eu. O PageMaker é o antecessor do Word, foi muito popular nos anos 1990, principalmente para diagramar jornais. Qualquer idiota aprende rapidinho a organizar um texto nele. É leve, interface simples, não trava, não tem cheiro e não solta as tiras. E foi por isso que eu não levei nem duas semanas para ter um protótipo do livro pronto para ser impresso.

Motivação é invenção de fracassado.

Meu plano era mostrar o boneco do livro para algumas pessoas antes de sair fazendo cópias por aí. O conselho do meu amigo meio veado da festa de gala ainda me perturbava de alguma forma. Li em algum lugar que você nunca deve mostrar uma obra a um amigo, ele não vai ser completamente honesto em sua avaliação. Provavelmente ele vai elogiar só para não te desanimar. Melhor mesmo mostrar a alguém que pouco se importa com você, o gerente do seu banco, por exemplo. Um inimigo seria o ideal, ele certamente faria a crítica mais imparcial de todas. Como não cultivo nenhum inimigo na vida, mostrei a um sujeito que conheci na padaria do meu bairro. Ele sempre toma seu café lendo um exemplar da Folha de São Paulo, apesar de morar em Cuiabá e ostentar um sotaque de carioca da gema. Numa escala de zero a dez de pessoas intelectualmente propensas para se apresentar um esboço literário, eu o classificaria como alguém bastante acima da média. Era ele.

- Hum, sei não. Tem muita divagação aí. Foi a sentença que ouvi dias depois, quando voltei a padaria para buscar a sua opinião do manuscrito. Mandei ele e sua Folha de S. Paulo catarem coquinhos. Vou publicar essa merda assim mesmo, afinal de contas, é só o primeiro livro. Primeiros livros não são feitos para serem bons. Ninguém escreve um best-seller de primeira. Isso só fez crescer a minha admiração pela professora Ruth. “- Classe, anotem isso: o colega Luciano ainda será um grande escritor do nosso tempo” era algo que ecoava em meus pensamentos sempre que pensava no meu livro.

Divagação: s.f. Ação de divagar, de andar por uma ou outra parte.
Fig. O ato de se desviar arbitrariamente do assunto de que se trata; digressão.

Então eu finalmente decidi publicar aquele monte de divagações. Depois eu replanto as árvores e já mato dois coelhos com uma cajadada só. Também não demorou muito para eu perceber que existe uma barreira alta e espinhosa entre ter um boneco pronto e receber os exemplares da gráfica. Orcei o valor de uma produção independente em tudo que é buraco e descobri que meu velho objetivo de juventude teria um custo nada amigável. Talvez agora o gerente do banco seja mais útil. Mas nem isso iria me fazer parar. Vendi algumas coisas que só ocupavam espaço em casa e levantei o dinheiro que precisava para… tirar a minha ideia no papel (?!). Em breve eu me tornaria elegível à ocupar a cadeira do próprio Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras. Feito que encheria Ruth Schenffweimmer de orgulho, apesar do Alzheimer e dos efeitos avançados da catarata.

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