Li certa vez em algum lugar que cães precisam passear, todos os dias, e de preferência, mais de uma vez por dia. É vital para eles, assim como é o futebol para os homens e as liquidações para as mulheres. Se não passeiam, os cães, ficam tristes, antissociais, deprimidos e morrem prematuramente. Ou apenas têm uma vida cheia de tristezas e arrependimentos, como em ‘O curioso caso de Benjamin Button’. Ou seria em ‘A origem’? Nunca lembro.
Digo isso porque tenho o meu cão, que atende prontamente quando o chamam de Leopoldo II. Segundo porque perdi o primeiro – ou me roubaram, ou ele foi abduzido por extraterrestres. Um mistério até hoje. Na verdade, suspeito que ele se rebelou e fugiu, apesar de todos os mimos e bons tratos que sempre lhe dediquei, inclusive com passeios diários, ração da melhor qualidade e visitas íntimas da yorkshire da vizinha. Mas ele preferiu viver do seu jeito, partiu para um mundo desconhecido em busca de um sentido para a sua vida canina. Respeito isso. Sempre vi muitos sonhos e ambições nos olhos daquele cãozinho.
Para mim sobrou a perda extremamente sentida, por isso tratei logo de arrumar um substituto. Então adotei um novo animal com a mesma aparência: um Pinscher que parece Basset mas tem cara de Fox Paulistinha. O rapaz do canil me garantiu que era pinscher puro - ’Vai por mim, grande. É pinscher de raça!’ – disse ele. Posso não saber nada de coisa alguma, mas sei reconhecer um pinscher puro quando vejo um, e aquele estava longe de ser. Seu simples comportamento já denunciava a falta de pedigree. Fingi que acreditei porque gostei daquele cachorro tristonho no canto do canil, ele era preto com acabamentos em tons de canela. Não importava, ele lembrava muito o Leopoldo que se foi, não tive nenhuma dúvida, era ele quem eu estava procurando. Então dei-lhe o mesmo nome mudando apenas o algarismo romano, seguindo à risca a tradição da monarquia belga do século XIX.
Como não poderia deixar de ser, meu novo amigo apreciava um bom passeio, e não perdemos tempo, estreamos com um estirão pelo bairro. Saímos por volta das 21 horas de um dia qualquer de novembro, ambos felizes da vida, era uma nova amizade que estava começando. Ele, obedecendo seus instintos, marcava território com uma urinada marota a cada 200 metros e eu o observava enquanto pensava na vida, no universo e tudo mais. Imagino que os humanos também tenham a necessidade desses passeios de vez em quando. Caminhar, sozinho, observando as pessoas em suas casas vidradas na televisão me lembra como elas são tão domesticadas quanto os próprios cães. Talvez fossem mais felizes se passeassem com alguma regularidade.
Posso não saber nada de coisa alguma, mas sei reconhecer um pinscher puro quando vejo um, e aquele estava longe de ser.
Então a minha divagação boêmia foi interrompida quando notei a silhueta de um homem caminhando em minha direção. Ele andava arrastando levemente uma das pernas, esguio, de estatura mediana, gingado malemolente, trajes modestos. A lua minguante não permitia que eu colhesse mais informações. Era apenas um sujeito taciturno vagando pela vizinhança. Um mau elemento moldado pela nossa sociedade libertina, talvez. Fui ficando mais ressabiado conforme íamos nos aproximando. Não havia ninguém por perto, apenas as casas lacradas por grades e cercas elétricas orladas por terrenos baldios. Poderia até jurar que ouvi o uivo de um lobo, mas não tenho certeza, acho que só imaginei. Diminui o passo e tomei uma posição levemente defensiva. Aquilo não me cheirava nada bem.
Quando estávamos a menos de 30 metros pude sentir a mesma sensação de vulnerabilidade que se tem quando aguardamos a abertura do portão na saída do motel. Poderia perfeitamente ser um meliante (sempre quis escrever “meliante”), não moro numa cidade segura, longe disso. As chances de me ver em uma cilada eram enormes. Pensei em intimidá-lo sacando meu celular e fingindo ser um delegado da Polícia Federal coordenando uma operação contra o tráfico de drogas. Mas isso poderia ser de uma estupidez sem tamanho, eu posso parecer qualquer coisa, menos um delegado de entorpecentes da PF. Eu tenho cara e jeito de almofadinha, apesar de não ser. Pensei em dar meia volta e correr como Forrest Gump libertando-se dos aparelhos das pernas, mas isso poderia comprometer minha honra. Resolvi ir para o confronto.
Os 15 metros de distância revelaram a face tenebrosa do possível meliante (já usei essa palavra?). Certamente era um meliante (de novo), tinha todas as características de um meliante (ok, isso já está ficando chato). Era mesmo um meliante (desisto!). Quando chegou o momento derradeiro eu senti que algo inóspito aconteceria, o coração disparou e o mecanismo natural de defesa me colocou em alerta com uma descarga de adrenalina. Menos de 5 metros nos separavam, não tinha mais volta, e então, inevitavelmente, algo aconteceu.
Leopoldo deu um salto na direção daquele homem e rosnou como nunca o vi seu antecessor fazendo. Ele pressentiu o perigo e quis me defender, imaginei. Traduzindo seus latidos seria como se ele me dissesse: - Fuja, Bino. É uma cilada! – então ordenei um incoerente e involuntário - Leopoldo! Quieto! - imaginando que aquilo poderia ser a deixa para o infeliz sacar um canivete em minha direção, ou um fuzil AR-15, ou a espada olímpica do Jiraya. Mas, em vez disso, ele rapidamente levou as duas mãos ao peito, deu um pulo para trás e soltou um involuntário e altamente vexatório ‘Ui’. Nem o Clodovil faria aquilo com tanta graciosidade.
Com voz aguda disse desmunhecando um dos pulsos como se tivesse perdido o fôlego com o susto: - Moço, minha nossa, esse vira-latas morde? - fiquei sem reação. Completamente sem reação. Absurdamente sem reação. O mesmo semblante de paspalho do goleiro que toma um frango em jogo de Copa do Mundo. A mesma cara de bocó quando quebramos alguma coisa em público. Olhei para Leopoldo II, ele apresentava a mesma reação. Não era uma cilada. Não era um meliante. E, por Deus, Leopoldo também não era um pinscher.
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